O mundo de ponta-cabeça

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Em O mundo de ponta-cabeça: ideias radicais durante a Revolução Inglesa de 1640, o historiador britânico Christopher Hill (1912-2003) busca abordar um aspecto até então pouco explorado do período que compreende a Guerra Civil Inglesa e o protetorado de Cromwell: a difusão de ideias e grupos radicais que propunham reformas políticas, econômicas e religiosas. Esses grupos religiosos radicais, que se multiplicaram devido à liberdade de credo e de imprensa desfrutadas nesse curto período, propunham reformas na sociedade que iam muito além daquelas defendidas e levadas a cabo pelos partidários do Parlamento, em geral grandes comerciantes e pequena nobreza rural. Nas palavras de Hill, os radicais propunham “outra revolução, que nunca chegou a se concretizar, embora de tempos em tempos ameaçasse acontecer” (HILL, 1987, p. 32).

Christopher Hill tem como principal tema de seus estudos a Inglaterra do século XVII, especialmente o período da Revolução Inglesa, sobre a qual versam suas principais obras, entre elas A Revolução Inglesa de 1640 (1940) e O Eleito de Deus (1970), biografia de Oliver Cromwell. Marxista e membro do Partido Comunista da Grã-Bretanha até 1957, Hill participou do grupo de historiadores do qual faziam parte Edward Thompson e Eric Hobsbawm. Entretanto, a abordagem de Hill em O mundo de ponta-cabeça não é orientada pelos modelos de interpretação marxistas tradicionais: embora o autor não deixe de discutir os aspectos econômicos do período e o antagonismo de classes existente, a ênfase da obra está nas ideias que circularam durante o período, na forma como a religião perpassava outras esferas como a política e a economia, nas possibilidades abertas pela livre-interpretação dos textos sagrados.

A obra busca retratar o processo revolucionário do ponto de vista das camadas mais baixas da população inglesa, retratando setores radicais dessas camadas como um terceiro elemento nas disputas travadas no período de 1640 a 1660, uma vez que abordagens tradicionais opõem o Parlamento, representante da gentry (pequena nobreza rural) e comerciantes, aos partidários da monarquia, provenientes da aristocracia. Ainda que as camadas populares tenham sido instadas pelos puritanos a lutar pela causa do Parlamento (contra o “Anticristo” que era a realeza e a Igreja Oficial), a participação delas na guerra e na política fez com que tomassem consciência do seu poder e que aspirassem a transformações muito mais profundas do que aquelas levadas a cabo pelo poder republicano. O período é caracterizado como sendo de fermentação intelectual, liberdade religiosa e de expressão, milenarismo, mobilidade, um momento único na história inglesa.

O livro inicia traçando um panorama com os elementos que, à época da revolução, eram presentes na sociedade inglesa e que contribuíram para o surgimento e disseminação das ideias e seitas religiosas radicais das quais o livro trata. O autor aborda o antagonismo de classes que marcava a sociedade da época, o anticlericalismo presente nas classes mais baixas, a existência dos “homens sem senhor”, indivíduos dotados de grande mobilidade dentro da ordem existente, que podiam tanto se aglomerar em cidades como Londres ou ocupar florestas ou outras terras. A presença do fantástico nessa sociedade também é evidenciada, e, apesar da reforma protestante combater o que considerava magia, a presença de astrólogos, curandeiros e feiticeiros ainda era evidente, tendo os primeiros prestígio até mesmo junto a importantes figuras da época. A formação do Exército de Novo Tipo, tendo em suas fileiras grandes contingentes de pessoas do povo, para lutar pela causa do Parlamento contra os realistas, trouxe os elementos populares para o palco da política, ao mesmo tempo em que a mobilidade do exército, a presença de pessoas de todo o país e os pregadores itinerantes permitiram a disseminação de ideias de maneira nunca antes vivenciada.

Entre outros aspectos, Hill aborda as interpretações teológicas que fermentavam no período, como a descrença na existência do céu e inferno, a Bíblia tomada como mito e tendo sua infalibilidade contestada, o questionamento do pecado e do sentido da Queda do homem. No campo social e econômico, o historiador demonstra que foram questionadas as hierarquias terrenas e a existência da propriedade privada, buscou-se implantar uma educação universal e contestou-se a divisão entre intelectuais e trabalhadores manuais, o que se manifestava, em algumas seitas, no fato do pregador ser um dos artesãos da comunidade. Na esfera dos costumes, os radicais foram muito além do que Hill chama de revolução sexual puritana, postulando a igualdade entre os sexos, o divórcio, e até mesmo a liberdade sexual.

Embora a Restauração da monarquia em 1660 tenha frustrado a maior parte das aspirações dos radicais, o autor considera que o período e os pensadores radicais que nele atuaram são parte das transformações que “precipitaram a Inglaterra no mundo moderno” (HILL, 1987, p. 366), ainda que o país que surgiu não tenha sido aquele por eles sonhado: “um império comercial de extrema eficácia e um sistema de dominação de classes […] resistente à passagem do tempo” (Idem, Ibidem).  A experiência vivenciada no período, por pessoas comuns, é o saldo que o autor procura resgatar daquele período:

“Especularam sobre o fim do mundo e a vinda do milênio; sobre a justiça de Deus em condenar a massa da humanidade por um pecado que, se alguém cometeu, foi Adão; alguns até puseram em questão a existência do inferno. Contemplaram a possibilidade de que […] uma centelha divina poderia existir dentro de cada um de nós. Fundaram novas seitas para exprimir estas ideias. Alguns consideraram a possibilidade de que pudesse não existir um Deus Criador – haveria, somente, a natureza. Contestaram a monopolização do conhecimento […]. Criticaram a estrutura educacional vigente, especialmente as universidades, e propuseram uma grande ampliação das oportunidades educacionais. Discutiram as relações entre os sexos e questionaram parte da ética protestante.” (HILL, 1987, p. 345)

As fontes utilizadas por Hill são, em grande parte, panfletos e petições impressos durante o período revolucionário, tanto por parte dos radicais quanto daqueles que os criticavam. Merecem destaque os escritos de Gerrard Winstanley, importante teórico do grupo denominado “diggers”, cujas ideias sobre teologia e crítica da propriedade privada são amplamente utilizadas pelo historiador. Também são consultadas as legislações editadas durante o período, e obras literárias como os escritos de John Milton, entre eles Paraíso Perdido. O material com que Hill trabalha é, nas palavras do autor, “parte daquilo que seus predecessores […] desqualificaram sob o nome de ‘camada de lunáticos’” (HILL, 1987, p. 33). Busca, assim, compreender tais expressões para além do fato de parecerem irracionais no tempo presente, mas sob a perspectiva de que faziam sentido na época em que foram elaboradas, sendo de grande valia para o entendimento da sociedade que as originou (HILL, 1987, p. 34-35).

Ao trazer uma abordagem nova para a Revolução Inglesa, abandonando uma perspectiva “vista de cima” e mesmo as abordagens restritas aos campos econômico e social, Hill consegue atentar para as possibilidades que aquele período trazia e que não foram concretizadas, e nisto se encontra seu grande êxito. As ideias radicais que Hill aborda em sua obra são aquelas que de alguma maneira são significativas para seu tempo e seu lugar, revisitando assim determinados questionamentos da religião, da ordem econômico-social e da ética protestante que falam diretamente ao tempo presente.

HILL, Cristopher. O mundo de ponta-cabeça: ideias radicais durante a revolução inglesa de 1640. São Paulo: Companhia das Letras, 1987.

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